
O mês de junho no Nordeste, outrora um período de fé genuína e celebração comunitária, hoje se encontra em uma encruzilhada cultural. De fogueiras em terreiros a palcos gigantescos que beiram o bilhão em gastos, a festa junina vive uma profunda e questionável transformação impulsionada pelo poder público e pela era digital.
As Raízes Europeias e o Sincretismo Brasileiro
A jornada das festas juninas no Brasil começou com a chegada dos colonizadores portugueses. Eles trouxeram consigo celebrações europeias de origem pagã, que marcavam o solstício de verão e a abundância das colheitas. Na Europa, essas festividades foram, então, cristianizadas pela Igreja Católica e dedicadas a santos populares cujas datas coincidiam com o período.
Em terras brasileiras, essas tradições se fundiram com a rica tapeçaria cultural indígena e africana. O sincretismo foi inevitável: as fogueiras, as danças, as comidas à base de milho e as rezas se misturaram, moldando a vibrante celebração que hoje conhecemos. A Igreja Católica desempenhou um papel central nessa difusão, catequizando a população e incorporando as festividades ao calendário litúrgico, com procissões, missas e a celebração dos santos.
Os Pilares da Devoção Religiosa: Uma Trilogia de Fé e Contradições
As festas juninas são um tributo a três figuras-chave do catolicismo, cada uma com sua história e simbolismo:
Santo Antônio (13 de junho): Nascido em Lisboa no final do século XII, Fernando de Bulhões se tornou frei franciscano, adotando o nome de Antônio. Famoso por sua eloquência na pregação e sua caridade com os pobres, é popularmente conhecido como o “Santo Casamenteiro” e o “Santo das Causas Perdidas”. Sua festa abre o ciclo junino, com simpatias e rituais para encontrar um amor ou resolver problemas.
São João Batista (24 de junho): Primo de Jesus Cristo e seu precursor, São João Batista é uma figura central do Novo Testamento. Ele viveu uma existência de extrema simplicidade e desapego material no deserto da Judeia, uma filosofia de vida que se assemelha às práticas ascéticas dos essênios – uma seita judaica que valorizava a pureza ritual, a vida comunitária e a renúncia aos prazeres mundanos. Contraditoriamente, sua festa, no Nordeste brasileiro, tornou-se sinônimo de fartura e exuberância material, com fogueiras gigantes e banquetes de milho. João Batista, o homem do deserto que pregava o arrependimento, é hoje o patrono de uma celebração que, paradoxalmente, ostenta o excesso. A fogueira de São João é seu símbolo mais emblemático, remetendo à tradição de que sua mãe, Isabel, a acendeu para anunciar seu nascimento a Maria. É o ponto alto das celebrações no Nordeste, com as maiores festas e a abundância das comidas de milho.
São Pedro (29 de junho): Pescador da Galileia, Simão foi chamado por Jesus e recebeu o nome de Pedro (“pedra”), tornando-se um dos principais apóstolos e o primeiro Papa. Embora tenha sido aquele que na hora do aperto, negou Jesus por 3 vezes, tenha escrito muito menos que São Paulo… Pedro, acabou sendo eleito o patrono da igreja católica romana, e venerado como o guardião das chaves do céu e o padroeiro dos pescadores e das viúvas. Sua festa encerra o ciclo junino, muitas vezes com procissões marítimas nas cidades litorâneas, marcando o fim oficial dos festejos.

A Ascensão Digital e a Política do Espetáculo Midiático: O Bilhão no Centro do Velado Jogo
Acompanhando a diminuição da proporção de católicos no Brasil e a ascensão da era digital, as festas juninas nordestinas passaram por uma profunda transformação política e comercial. O que antes eram celebrações religiosas e comunitárias, com forró pé-de-serra e quadrilhas em terreiros, converteram-se em gigantescos “showmícios”.
Prefeitos e governadores, utilizando vastos recursos públicos, investem em estruturas colossais, cachês milionários para artistas nacionais (muitas vezes de gêneros musicais distantes do forró tradicional), além de som, iluminação e segurança. A festa é, então, terceirizada e assume um caráter de evento de massa e autopromoção política.
Com o advento das redes sociais e das plataformas televisivas, em especial o YouTube, esses “showmícios” ganharam alcance global, permitindo a transmissão ao vivo para o mundo. Essa visibilidade amplifica a imagem dos políticos e dos eventos, mas também expõe a desproporcionalidade dos gastos. Só no estado da Bahia, por exemplo, os gastos públicos totais com cachês, palcos, som, ornamentação, segurança pública e toda a estrutura administrativa envolvida nos festejos juninos podem beirar a cifra do bilhão de reais. Essa realidade, vista como um desvirtuamento, prioriza o espetáculo em detrimento da autenticidade cultural e religiosa. Artistas locais, que representam a essência do forró, muitas vezes recebem cachês irrisórios em comparação, enquanto palcos e recursos são monopolizados por atrações de grande porte.

O Futuro das Tradições: Cultural, Religiosa, Musical, Culinária e das Famílias com a Vizinhança… Para Onde Caminhamos?
Esse processo levanta questões urgentes sobre a mudança cultural, religiosa e política das festas juninas. A tradição, a fé e o espírito comunitário parecem ceder lugar ao entretenimento massificado e à estratégia eleitoral.
Diante de toda essa metamorfose, a população brasileira, e em especial a nordestina, precisa refletir: Aonde esperamos chegar com todas essas mudanças? Qual é o futuro da nossa identidade cultural e religiosa quando as festas que nos definem se tornam meros palcos para o espetáculo e a política, transmitidos ao vivo para o mundo, mas distantes de suas raízes?
Elson Andrade é arquiteto e urbanista ipiauense
Nenhum comentário:
Postar um comentário